quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Quando os híbridos são férteis pt. 1

Darwin, além de talento, teve sorte. Ao chegar ao arquipélago de Galápagos, no Pacífico, encontrou uma rica variedade de tartarugas e aves vivendo sob condições ambientais peculiares, como o isolamento geográfico e a dieta, que devem ter influenciado fortemente sua evolução ao longo de milhões de anos. As prováveis causas do fato de haver tantos animais tão semelhantes entre si ? as aves, por exemplo, com o bico mais curto ou mais longo, dependendo do que comiam ? pareciam claras. Mas o mundo não é só como Galápagos. Os biólogos de hoje, mesmo estudando espaços ricos em biodiversidade como a mata atlântica, nem sempre encontram histórias evolutivas e espécies próximas com diferenças tão claras entre si. Em compensação, ao trabalhar com trechos de DNA conhecidos como marcadores moleculares, agora eles podem encontrar as bases genéticas da diversificação das espécies. Um mecanismo de formação de novas espécies que vem ganhando reconhecimento entre os pesquisadores é a possibilidade de espécies de plantas e animais geneticamente próximos entre si cruzarem naturalmente e gerarem híbridos férteis.

Antes essa ideia era pouco aceitável porque, em geral, espécies diferentes apresentam número distinto de cromossomos, estruturas no interior das células que contêm os genes. Essa diferença poderia inviabilizar o desenvolvimento do embrião, já que cada cromossomo que veio do macho precisa estar alinhado com um equivalente que veio da fêmea na hora de a célula fertilizada se dividir. Sem esse alinhamento, na maior parte das vezes a célula não se reproduz e morre. Mas há exceções, que parecem ser menos raras do que se imaginava. O cruzamento entre plantas ? ou animais ? de espécies próximas pode gerar seres que, apesar de híbridos, são férteis, ainda que na fase inicial de multiplicação celular alguns cromossomos não encontrem o respectivo par. Se tiverem tempo e condições ambientais favoráveis, esses híbridos podem gerar espécies diferentes das que lhes deram origem. 

Hoje a palavra ?híbrido? não define só seres estéreis como a mula, resultado do cruzamento de jumento com égua, mas também seres férteis como as orquídeas da mata atlântica mantidas em um dos viveiros do Instituto de Botânica de São Paulo. O híbrido, com 38 cromossomos, resulta do cruzamento natural entre duas espécies selvagens, Epidendrum fulgens, com 24 cromossomos, e Epidendrum puniceolutem, com 52. Externamente, as diferenças são sutis. As flores das chamadas plantas parentais são vermelhas ou amarelas. Já as das híbridas podem ser alaranjadas com pontos vermelhos.

Só a genética não basta para reconhecer os híbridos férteis. Eles agora são identificados com relativa facilidade porque, além de comparar o número de cromossomos, os especialistas examinam, inicialmente, os aspectos mais visíveis dos ambientes onde os híbridos e as espécies que lhes deram origem vivem. Depois entram na história da paisagem, estudando os mapas geológicos e de variações climáticas, que indicam se deslocamentos de blocos de rochas, tremores de terra ou variações prolongadas de chuva ou temperatura aproximaram ou afastaram populações de plantas ou animais, beneficiando ou não a formação de novas espécies.

No caso das orquídeas, os híbridos viviam tanto na restinga, ambiente típico da E. puniceolutem, quanto nas dunas, onde E. fulgens é encontrada. ?Essa versatilidade sugere que algumas regiões do genoma podem ser trocadas entre essas espécies, conferindo ao híbrido capacidade maior de aproveitamento do hábitat?, diz o botânico Fábio Pinheiro, pesquisador associado do Instituto de Botânica de São Paulo. ?Provavelmente a hibridação natural é uma das explicações da elevada diversificação do gênero Epidendrum, constituído por cerca de 1.500 espécies.?

Por precaução, em uma apresentação no Kew Botanic Gardens, de Londres, em maio de 2009, Pinheiro não mencionou o número de cromossomos dos híbridos, com medo das reações. ?Mas os especialistas em orquídeas do Kew perguntaram e, quando viram, não acreditaram. Disseram que havia algo errado, mas depois aceitaram?, conta. A visão predominante é que espécies diferentes não cruzam naturalmente e que os híbridos que porventura se formem são estéreis. O argumento usado é que as células germinativas não conseguiriam formar descendentes viáveis.

No entanto, a maioria das plantas resulta de hibridações naturais ou induzidas entre espécies próximas, lembra Fábio de Barros, coordenador do projeto no Instituto de Botânica. A hibridação induzida é o que faz aparecerem espécies únicas de orquídeas e de plantas usadas na alimentação, como o milho e a cana-de-açúcar. Normalmente os híbridos apresentam alguma vantagem ? no caso dos alimentos, são mais resistentes a doenças e mais produtivos do que as espécies puras. ?Darwin já tinha escrito que os híbridos podem ser estéreis ou férteis, mas não tinha como provar, porque não havia marcadores moleculares para identificar as assinaturas genéticas de híbridos férteis?, diz Barros. ?Aparentemente a hibridação é bastante comum e parece ter um papel muito mais importante na evolução do que imaginamos.?

Os botânicos já viram outros casos. As orquídeas do gênero Ophrys, da região do Mediterrâneo, formam híbridos de alta fertilidade. O cruzamento entre duas plantas baixas com flores amarelas da Europa e dos Estados Unidos, Senecio squalidus e S. vulgaris, originou um híbrido que atrai mais polinizadores e poderia gerar mais frutos que as espécies que lhe deram origem.

Orquídea híbrida da mata atlântica

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